Quanto aos milagres
propriamente ditos, Deus, visto que nada lhe é impossível, pode fazê-los. Mas
fá-los? Ou, por outras palavras; derroga as leis que Dele próprio emanaram? Não
cabe ao homem prejulgar os atos da divindade, nem os subordinar à fraqueza do
seu entendimento. Contudo, em face das coisas divinas, temos, para critério do
nosso juízo, os atributos mesmos de Deus. Ao poder soberano reúne ele a
soberana sabedoria, donde se deve concluir que não faz coisa alguma inútil. Por
que, então, faria milagres? Para atestar o seu poder, dizem. Mas o poder de Deus
não se manifesta de maneira muito mais imponente pelo grandioso conjunto das
obras da criação, pela sábia previdência que essa criação revela, assim nas
partes mais gigantescas, como nas mínimas, e pela harmonia das leis que regem o
mecanismo do universo, do que por algumas pequeninas e pueris derrogações que
todos os prestímanos sabem imitar? Que se diria de um sábio mecânico que, para
provar a sua habilidade, desmantelasse um relógio construído pelas suas mãos,
obra-prima de ciência, a fim de mostrar que pode desmanchar o que fizera? Seu
saber, ao contrário, não ressalta muito mais da regularidade e da precisão do
movimento da sua obra? Não é, pois, da alçada do espiritismo a questão dos milagres;
mas, ponderando que Deus não faz coisas inúteis, emite a seguinte opinião: Não
sendo necessários os milagres para a glorificação de Deus, nada no universo se
produz fora do âmbito das leis gerais. Deus não faz milagres, porque, sendo, como
são, perfeitas as suas leis, não lhe é necessário derrogá-las. Se há fatos que
não compreendemos, é que ainda nos faltam os conhecimentos necessários.
Admitido que Deus houvesse alguma vez, por motivos que nos escapam, derrogado
acidentalmente leis por ele estabelecidas, tais leis já não seriam imutáveis. Mesmo,
porém, que semelhante derrogação seja possível, ter-se-á, pelo menos, de
reconhecer que só ele, Deus, dispõe desse poder; sem se negar ao espírito do
mal a onipotência, não se pode admitir lhe seja dado desfazer a obra divina,
operando, de seu lado, prodígios capazes de seduzir até os eleitos, pois que
isso implicaria a ideia de um poder igual ao de Deus. É, no entanto, o que
ensinam. Se Satanás tem o poder de sustar o curso das leis naturais, que são
obra de Deus, sem a permissão deste, mais poderoso é ele do que a divindade.
Logo, Deus não possui a onipotência e se, como pretendem, delega poderes a Satanás,
para mais facilmente induzir os homens ao mal, falta-lhe a soberana bondade. Em
ambos os casos, há negação de um dos atributos sem os quais Deus não seria Deus.
Daí vem a igreja distinguir os bons milagres, que procedem de Deus, dos maus
milagres, que procedem de Satanás. Mas como diferençá-los? Seja satânico ou
divino um milagre, haverá sempre uma derrogação de leis emanadas unicamente de
Deus. Se um indivíduo é curado por suposto milagre, quer seja Deus quem o
opere, quer Satanás, não deixará por isso de ter havido a cura. Forçoso se
torna fazer pobríssima ideia da inteligência humana para se pretender que
semelhantes doutrinas possam ser aceitas nos dias de hoje. Reconhecida a
possibilidade de alguns fatos considerados miraculosos, há de se concluir que,
seja qual for a origem que se lhes atribua, eles são efeitos naturais de que se
podem utilizar Espíritos desencarnados ou encarnados, como de tudo, como da própria
inteligência e dos conhecimentos científicos de que disponham, para o bem ou
para o mal, conforme neles preponderem a bondade ou a perversidade. Valendo-se
do saber que haja adquirido, pode um ser perverso fazer coisas que passem por
prodígios aos olhos dos ignorantes; mas quando tais efeitos dão em resultado um
bem qualquer, fora ilógico atribuir-se-lhes uma origem diabólica. Mas a
religião, dizem, se apoia em fatos que nem explicados, nem explicáveis são. Inexplicados,
talvez; inexplicáveis, é questão muito outra. Que sabe o homem das descobertas
e dos conhecimentos que o futuro lhe reserva? sem falar do milagre da criação,
o maior de todos sem contestação possível, já pertencente ao domínio da lei
universal, não vemos reproduzirem-se hoje, sob o império do magnetismo, do
sonambulismo, do espiritismo, os êxtases, as visões, as aparições, as
percepções a distância, as curas instantâneas, as suspensões, as comunicações
orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos esses conhecidos
desde tempos imemoráveis, tidos outrora por maravilhosos e que presentemente se
demonstra pertencerem à ordem das coisas naturais, de acordo com a lei
constitutiva dos seres? Os livros sagrados estão cheios de fatos desse gênero,
qualificados de sobrenaturais; como, porém, outros análogos e ainda mais
maravilhosos se encontram em todas as religiões pagãs da Antiguidade, se a
veracidade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos,
não se saberia dizer qual a que devesse prevalecer.
(Do livro "A Gênese", Allan Kardec, FEB)