Alguns dias antes da prisão do Mestre, os
discípulos, nas suas discussões naturais, comentavam o problema da fé, com o
desejo desordenado de quantos se atiram aos assuntos graves da vida, tentando,
apressadamente, forçar uma solução.
— Como será essa virtude? De que modo
conservá-la-emos intacta no coração? — inquiria Levi, com atormentado
pensamento. Tenho a convicção de que somente o homem culto pode conhecer toda a
extensão de seus benefícios.
— Não tanto assim — aventava Tiago, seu
irmão —, acredito que basta a nossa vontade, para que a confiança em Deus
esteja viva em nós.
— Mas a fé será virtude para os que apenas
desejam? — perguntava um dos filhos de Zebedeu.
A um canto, como distante
daqueles duelos da palavra, Jesus parecia meditar. Em dado instante, solicitado
ao esclarecimento, respondeu com suavidade:
— A fé pertence, sobretudo, aos que
trabalham e confiam. Tê-la no coração é estar sempre pronto para Deus. Não
importam a saúde ou a enfermidade do corpo, não têm significação os infortúnios
ou os sucessos felizes da vida material. A alma fiel trabalha confiante nos
desígnios do Pai, que pode dar os bens, retirá-los e restituí-los em tempo
oportuno, e caminha sempre com serenidade e amor, por todas as sendas pelas
quais a mão generosa do Senhor a queira conduzir.
— Mas, Mestre — redarguiu Levi, em respeitosa atitude —, como
discernir a vontade de Deus, naquilo que nos acontece? Tenho observado grande
número de criaturas criminosas que atribuem à Providência os seus feitos
delituosos e uma legião de pessoas inertes que classificam a preguiça como
fatalidade divina.
— A vontade de Deus, além da que conhecemos
através de sua lei e de seus profetas, através do conselho sábio e das
inclinações naturais para o bem, é também a que se manifesta, a cada instante
da vida, misturando a alegria com as amarguras, concedendo a doçura ou
retirando-a, para que a criatura possa colher a experiência luminosa no caminho
mais espinhoso. Ter fé, portanto, é ser fiel a essa vontade, em todas as
circunstâncias, executando o bem que ela nos determina e seguindo-lhe o roteiro
sagrado, nas menores sinuosidades da estrada que nos compete percorrer.
— Entretanto — observou Tomé
—, creio que essa qualidade excepcional deve ser atributo do espírito mais
cultivado, porque o homem ignorante não poderá cogitar da aquisição de
semelhante patrimônio.
O Mestre fitou o apóstolo com amor e
esclareceu:
— Todo homem de fé será, agora ou mais
tarde, o irmão dileto da sabedoria e do sentimento; porém, essa qualidade será
sempre a do filho leal ao Pai que está nos Céus.
— Todavia, quem possuirá no mundo lealdade
perfeita como essa?
— Ninguém pode julgar em absoluto — disse o
Cristo com bondade —, a não ser o critério definitivo de Deus; mas, se essa
conquista da alma não é comum às criaturas de conhecimento parco ou de posição
vulgar, é bem possível que a encontremos no peito exausto dos mais infelizes ou
desclassificados do mundo.
O apóstolo sorriu desapontado, no seu
cepticismo de homem prático. Dentro em pouco, a pequena comunidade se
dispersava, à aproximação do manto escuro da noite.
Na hora sombria da cruz, disfarçado com vestes diferentes, Tomé
acompanhou, passo a passo, o corajoso Messias.
Estranhas reflexões surgiam-lhe no espírito.
Sua razão de homem do mundo não lhe proporcionava elementos para a compreensão
da verdade toda. Onde estava aquele Deus amoroso e bom, sobre quem repousavam
as suas esperanças? Seu amor possuiria apenas uma cruz para oferecer ao filho
dileto? Por que motivo não se rasgavam os horizontes, para que as legiões dos
anjos salvassem do crime da multidão inconsciente e furiosa o Mestre amado? Que
Providência era aquela que se não manifestava no momento oportuno? Durante três
anos consecutivos haviam acreditado que Deus guardava todo o poder sobre o
mundo; não conseguia, pois, explicar como tolerava aquele espetáculo sangrento
de ser o seu enviado, amorável e carinhoso, conduzido para o madeiro infamante,
sob impropérios e pedradas. O prêmio do Cristo era então aquele monte da
desolação, reservado aos criminosos?
Ansioso, o discípulo contemplou aquelas mãos que haviam semeado o
bem e o amor, agora agarradas à cruz como duas flores ensanguentadas. A fronte
aureolada de espinhos era uma nota irônica na sua figura sublime e respeitável.
Seu peito tremia, ofegante, seus ombros deveriam estar pisados e doloridos.
Valera a pena haver distribuído, entre os homens, tantas graças do Céu? O
malfeitor que assaltava o próximo era, agora, a seu ver, o dono de mais
duradouras compensações.
Tomé se sentia como que
afogado. Desejou encontrar algum dos companheiros para trocar impressões,
entretanto, não viu um só deles. Procurou observar se os beneficiados pelo
Messias assistiam ao seu martírio humilhante, na hora final, lembrando de que
ainda na véspera se mostravam tão reconhecidos e felizes com a sua santa
presença. A ninguém encontrou. Aqueles leprosos que haviam recuperado o dom
precioso da saúde, os cegos que conseguiram rever o quadro caricioso da vida,
os aleijados que haviam cantado hosanas à cura de seus corpos defeituosos,
estavam agora ausentes, fugiam ao testemunho. Valera a pena praticar o bem? O
apóstolo, mergulhado em dolorosos e sombrios pensamentos, deixava absorver-se em
estranhas interrogações.
Reparou que em torno da cruz estrugiam
gargalhadas que reportavam ironias. O Mestre, contudo, guardava no semblante
uma serenidade inexcedível. De vez em quando, seu olhar se alongava por sobre a
multidão, como querendo descobrir um rosto amigo.
Sob as vociferações da turba amotinada, a
Tomé parecia-lhe escutar ainda o ruído inolvidável dos cravos do suplício.
Enquanto as lanças e os vitupérios se cruzavam nos ares, fixou os dois
malfeitores que a justiça do mundo havia condenado à pena última. 10 Aproximou-se da cruz e notou que o
Messias punha nele os olhos amorosos, como nos tempos mais tranquilos. Viu que
um suor empastado de sangue lhe corria do rosto venerável, misturando-se com o
vermelho das chagas vivas e dolorosas. Com aquele olhar inesquecível, Jesus lhe
mostrou as úlceras abertas, como o sinal do sacrifício. Penosa emoção dominou a
alma sensível do discípulo. Olhos enevoados de pranto, recordou os dias
radiosos do Tiberíades.
As cenas mais singelas do apostolado
ressurgiam ante a sua imaginação. Subitamente, lembrou-se da tarde em que
haviam comentado o problema da fé, parecendo-lhe ouvir ainda as elucidações do
Mestre, com respeito à perfeita lealdade a Deus. Reflexões instantâneas lhe
empolgaram o coração. Quem teria sido mais fiel ao Pai do que Jesus?
Entretanto, a sua recompensa era a cruz do martírio! Absorto em singulares
pensamentos, o apóstolo observou que o Messias lançava agora os olhos
enternecidos sobre um dos ladrões, que o fixava afetuosamente.
Nesse instante, percebeu que a voz débil
do celerado se elevava para o Mestre, em tom de profunda sinceridade:
— Senhor!
— disse ele, ofegante — lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino!…
O
discípulo reparou que Jesus lhe endereçava, então, o olhar caricioso, ao mesmo
tempo que aos seus ouvidos chegavam os ecos de sua palavra suave e
esclarecedora:
— Vês,
Tomé? Quando todos os homens da lei não me compreenderam e quando os meus
próprios discípulos me abandonaram, eis que encontro a confiança leal no peito
de um ladrão!…
Inquieto, o discípulo
meditou na lição recebida e, horas a fio, contemplou o espetáculo doloroso, até
ao momento em que o Mestre foi retirado da cruz da derradeira agonia. Começava,
então, a compreender a essência profunda de seus ensinos imortais.
Como se o seu Espírito fora transportado ao
cume de alto monte, pareceu-lhe observar daí a pesada marcha humana. Viu
conspícuos homens da lei, sobraçando os livros divinos; doutores enfatuados de
orgulho passavam eretos; exibindo os mais complicados raciocínios. Homens de
convicções sólidas integravam o quadro, entremostrando a fisionomia satisfeita.
Mulheres vaidosas ou fanáticas lá iam, igualmente, revelando seus títulos
diletos. Em seguida, vinham os diretamente beneficiados pelo Mestre Divino. Era
a legião dos que se haviam levantado da miséria física e das ruínas morais.
Eram os leprosos de Jerusalém, os cegos de Cafarnaum, os doentes de
Sídon, os seguidores aparentemente mais sinceros, ao lado dos
próprios discípulos que desfilavam, envergonhados, e se dispersavam, indecisos,
na hora extrema.
Possuído de viva emoção, Tomé se pôs a chorar
intimamente. Foi então que presumiu escutar uns passos delicados e quase
imperceptíveis. Sem poder explicar o que se dava, julgou divisar, a seu lado, a
inolvidável figura do Mestre, que lhe colocou as mãos leves e amigas sobre a
fronte atormentada, repetindo-lhe ao coração as palavras que lhe havia
endereçado da cruz:
— Vês, Tomé? Quando todos os homens da lei
não me compreenderam e os próprios discípulos me abandonaram, eis que encontro
a confiança leal no peito de um ladrão!
(do livro "BOA NOVA", Humberto de Campos, Chico Xavier, FEB)